sábado, 9 de fevereiro de 2008

O PAPEL DA INSTRUÇÃO PARA A FÉ CRISTÃ E O ESPÍRITO SANTO NA TRANSFORMAÇÃO DO UNIVERSO RELIGIOSO ATUAL

Reverendo Fernando Ponçadilha (Igreja Anglicana / Belém-Pará)

"Todos vocês que têm sede venham à nascente das águas; mesmo
os que não têm dinheiro” (Is 55,1

1. Apesar de a presente reflexão ter caráter apenas avivalista e missionário visando atingir sobretudo o amplo corpo ministerial da Igreja: obreiros, evangelistas, dirigentes de escola dominical e círculos bíblicos, catequistas, etc. É importante fazer algumas considerações que julgamos oportunas para quem procura construir o ensino teológico enquanto preocupação da Igreja toda.

2. Um Novo Pentecostes na vida da Igreja de Cristo também exige a operação delicada do “deslocamento” daqueles que se ocupam desse ministério. Porque nesse outro papel só será considerado douto e sábio, o mestre que possuído por ternura, ardor e sensibilidade, buscar na ação do Espírito Santo, a edificação necessária que o conduza ao discernioso diálogo plural nessa multiplicidade de caminhos emergentes e sobressalentes no contexto atual do cristianismo. Se possível desconstruindo o excesso dessa carga histórica que sustenta o nosso estruturalismo cognitivo, em favor do ensino também apoiado na sensibilidade, na experiência espiritual e na mudança de caráter dos crentes a partir do Deus Vivo do Evangelho.

3. Um estudo mais apurado poderá nos revelar que até mesmo a palavra teologia ganha mais ênfase, com propriedade, no contexto medievo do que apostólico. É difícil o registro dessa palavra na era apostólica ou sub-apostólica. Não encontramos nos documentos que nos restam, anteriores à metade do segundo século, referência a essa palavra. Os primeiros mestres chamavam “instrução na Fé” (v.v. Didaquê) para o ensino cristão. Os responsáveis mais remotos por esse mimetismo entre logos helênico e Fé Cristã teria sido Hipólito, cuja erudição serviu para escrever uma longa refutação das seitas gnósticas. Justino Mártir, que repelia o culto pagão e o mito como superstições grosseiras, envenenadas pelo mal, mas acolhia o melhor possível da tradição filosófica clássica. Ele retoma a idéia de Filon de Alexandria: Os judeus foram saqueados pelos gentios; Platão é herdeiro consciente ou inconsciente de Moisés e as riquezas dos gregos são os despojos dos profetas. O logos, em uma palavra, é a razão de que participa a espécie humana e aqueles que vivem segundo essa razão são cristãos, sem que eles ou nós o saibamos. Essa generosa apologética marca a entrada consciente e sistemática do helenismo na especulação dos chamados “Pais da Igreja”. É com Irineu que a forma da erudição cristã torna-se estável e coerente, fim do séc. II A.D para o séc. III A.D. Mas foi com Agostinho, Tomaz de Aquino, Calvino , Lutero e outros que isso se tornou contumaz e exaustivo entre os “espíritos esclarecidos” dentro da tradição cristã. Entretanto, isso nunca foi aceito com tranqüilidade por todo corpo de Cristo. Encontramos pessoas tão ciosas pelo Reino de Deus, que se voltam com hostilidade na aurora dessa mistura. Tertuliano, por exemplo, cerca de 50 anos depois de Justino, não poupará os seus sarcasmos. E tertuliano exclama: “Morra Aristóteles”! “Abaixo o cristianismo estóico, platônico ou dialético”! “Depois de Jesus Cristo, não mais precisamos de teorias sutis nem de pesquisas, pois temos a verdade e seríamos bem tolos de nos perdermos em areias movediças”. Credo Quia Absurdum, fizeram-no dizer. Será isso um irracionalismo piedoso? Talvez não. Tertuliano não põe em dúvida que Deus seja Pai das luzes, mas acredita que a luz divina ofusca nossos olhos com seu brilho e que nossa inteligência embotada pelo pecado torna-se estúpida diante das razões celestes. (NÉDONCELLE, Maurice, In Existe Uma Filosofia Cristã? Cap. II, p.p. 33/34. Ed. Flamboyant/SP – 1958)

4. Com o advento da Idade Moderna quando o logos helênico se impõe como tribunal único sobre todas as esferas da vida: a) Intelectual (Iluminismo); b) Econômica (industrialismo) e c) Política (liberalismo), o cristianismo do mistério e do derramamento em Pentecostes cede lugar a um cristianismo teológico esclarecido por métodos de análise racional e por resultados da pesquisa cientifica. Isto vai provocar o despertamento dos avivalistas e pentecostais enquanto movimentos de reação ao saber extravagante da ilustração até porque Deus é mistério e não pesquisa e refutação. É nesse contexto que inclusive precisamos entender a refração original desses segmentos ao estudo (à maneira iluminista), porque exibicionista, ressentido com a fé e o mito e muito destruidor da visão empírica sobre as coisas. Ora, era de se esperar que um princípio, ainda que pareça excêntrico como o da inerrância das escrituras, enquanto base de pelo menos uma verdade, num tempo afirmativo de extremo relativismo e o ardor espiritual enquanto declarações explícitas da esperança recebida dos apóstolos ganhassem corpo naquele tempo de muita reserva e desprezo pelo sagrado.

5. Se para os triunfalistas o advento do logos grego é o alvorecer de múltiplas conquistas no ocidente, esse mesmo ocidente avalia o caráter arrogante e prepotente disso hoje nos variados centros de excelência do saber, enquanto caminhou paralelo às grandes conquistas, ensejando também estragos de incalculáveis proporções. Até porque o grego das primeiras manifestações cognitivas, na ânsia de desconstruir, sobretudo o sagrado inocente do mito, instaura o império da razão como coisa autônoma em relação à vida chegando ao modo insuportável do cartesianismo. De modo que o ato cognitivo é uma coisa e a experiência é outra. Inventam uma linguagem obscura que primeiro chamam Filosofia e depois Ciência, a ponto de desqualificar tudo o mais fora dessa camisa de força. O resultado disso foram 20 séculos de relativas conquistas para seletos iluminados acoplados aos poderes desse mundo (com relativo efeito generalizante) e a submissão quase que total (sempre houve insurgência) do restante da humanidade e suas formas sensitivas de expressão: a Fé, a Arte, o Coração. Razão pela qual tudo o que não era racional, por muito tempo, foi tratado pejorativamente como sombra, cópia, senso comum, trivial, etc. O Pentecostalismo de certo modo é uma atitude não-conformista de vertente mística ante ao caráter exceptivamente materialista que a Ilustração quis dá ao mundo, cujas raízes remotas estão no cartesianismo. Esse processo mitigado de niilismo e pessimismo, nas circunstâncias européias dos séculos XVIII e XIX , enquanto resultado de muita cognição, quase leva essa parte do mundo à morbidez geral, por conta da extrema arrogância com que julgava o seu tempo, o movimento iluminista. E isso de certo modo, ainda hoje persiste diluído na insistência do cientista da pesquisa exibicionista e fora de controle ético; na concepção liberalista de mercado que torna a pessoa refém do consumismo desnecessário, e na cultura do banal (na arte, no esporte, nos meios de comunicação, etc.), onde num mundo supra secularizado o prazer está no cigarro, na cerveja, no sensualismo, no sucesso a qualquer custo, etc. Nesse tipo de ambiente de pouca finalidade, os seres humanos reagem de diversas maneiras porque a vaidade, o permissivo e o grotesco não são respostas confiáveis.

6. Acontece que esse passado de imiscuidade entre fé e logos não deixa de ser relevante porque cumpriu um papel importante na descoberta de instrumentos que ajudam no estudo da Bíblia e para fazer mesmo a memória da comunhão dos santos e continuar interferindo com sabedoria na transformação desse mundo. O problema não é o passado. Ele é honroso. Aí de mim se não fosse o passado. O problema é se sentir órfão desse passado e continuar agindo (e produzindo) na mentalidade dele, como se fosse insuperável, sem sentir o apelo desse tempo. Um tempo das sensações, do subjetivismo e da paixão espiritual, pelo menos para os latino-americanos. Como também um tempo de novos padrões da psiquê e do caráter coletivo secular e porque não dizer de outro tipo de cristianismo: mais popular e menos erudito; mais espontâneo e menos solene; mais missionário e menos de cátedra, resultante da relação fecunda entre os modelos niceno-constantinoplano, reformado e renovado.

7. É preciso “esquecer o sabido para lembrar o esquecido”. Traçando o difícil caminho do contra-método, relativizando essa influência exaustiva que o helenismo exerce sobre a construção da Teologia. Fazendo aflorar um ensino que saiba, por mais paradoxal que isso possa parecer, estabelecer a “topografia” do diverso, do imprevisível, da efervescência, da paixão e do não-racional. Buscando nas fontes insurgentes a esse saber grego dentro da tradição cristã (Tertuliano, Benedito de Núrsia, Savonarola, Pascal, Wesley, e outros) e nos movimentos avivalistas do séc. XVIII, bem como na eclosão do pentecostalismo histórico do final do séc.XIX e início do séc. XX e, enfim, na experiência pneumática recente das comunidades eclesiais de base, a compreensão das razões pela quais essas atitudes se estabelecem às margens da tendência hegemônica que concretamente formalizou e solenizou o melhor da tradição apostólico sempre apresentado como positivo, normal, conseqüente, superior, etc. Enquanto os “outros” como desvairados, fanáticos, desagregadores, fundamentalistas ou coisa parecida. Evidentemente objetivando construir outro procedimento para a formação dos novos líderes cristãos, que leve em consideração o que se vive no cotidiano espontâneo das nossas comunidades, valorizando o simples, o fantástico e o pulsante, expresso no caráter informal inclusive da nova adoração dos movimentos cristãos emergentes.

8. Como creio na Palavra de Deus (Eclesiastes 3,1ss.) que há tempo para todo propósito debaixo do céu, creio, pois, também que é hora de redimensionar essa “regra grega” incrustada no ensino cristão remoto ou recente (pois nem a Reforma escapou) e que permanece na produção e na linguagem dos mestres modernos enquanto lugar comum. Que é hora de se instaurar uma hermenêutica inédita que traga um novo enfoque da dimensão bíblico-evangélica da Fé Cristã dentro do melhor do paradigma emergente calçado na relação recíproca entre o apostólico, o reformado e o renovado, que afinal parece ser o próximo horizonte da cristandade a ser seguido por boa parte das igrejas cristãs.

9. O certo é que a reflexão cognitiva não pode ofuscar o mistério e nem tampouco esvazia-lo. Precisamos escutar o apóstolo Paulo quando recomenda que sigamos o que é bom, justo e santo. Mas é duro para com a sabedoria desse mundo, que lhe parece bastante vã e incapaz de manter suas promessas. Na verdade, o espectro da nova mentalidade cristã que prorrompe faceira mudando a feição da cristandade espiritual, pastoral e liturgicamente falando, não pode e nem deve ser motivo de inquietação para ninguém, estamos diante do quarto fluxo proeminente do Espírito Santo. No primeiro, temos o mistério pneumatológico por excelência que é o Pentecostes bíblico. Em seguida, o monasticismo salvou o mistério pascal da usurpação dos neros pela vida austera e consagrada ao Reino. A Reforma recoloca o problema da Salvação e de Cristo como resgate do Querigma apostólico. E desde os avivalistas do séc. XVIII e do movimento pentecostal do séc. XX, que se tenta o resgate triunfante da mais bela doutrina dos apóstolos, o que parece estar acontecendo no contexto atual do cristianismo.

10. O mestre do Novo Pentecostes não pode vê o ensino cristão somente enquanto produção acadêmica, isto é, coisa de iluminados destinada ao consumo geral. A instrução cristã não pode ser refém de devaneios e nem tampouco do talento de nenhum grande estudioso, por mais proeminente que seja, se esta reflexão não buscar edificar os crentes na vivência da fé e da Igreja como corpo de Cristo. O ensino cristão não se destina a responder questões de caráter erudito, mas ajudar a comunidade dos fiéis na consolidação da Fé no poder do Espírito Santo.
O apóstolo Paulo assinala na Carta aos Efésios (4,11) que entre os vários ministérios, a uns é dado o dom de doutores ou mestres, sendo estes os que têm de Deus a tarefa de esclarecer, expor e ensinar a Palavra, a fim de edificar o corpo de Cristo (Ef. 4,12). A missão dos mestres é defender e preservar, mediante a ajuda do Espírito Santo, o Evangelho que lhes foi confiado (2Tm 1,11-14).
Eles têm o dever de fielmente conduzir a Igreja à revelação bíblica e à mensagem original de Cristo e dos apóstolos, e nisto perseverar. O saber dos mestres e doutores deve levar à edificação e ao bom discernimento, os membros do Corpo de Cristo. (A Fé Que Professamos).

11. Não podemos nos encerrar no passado estático do formalismo confessional e nem no presente exibicionista dos mais ungidos do que os outros. Ambos constituem negação da verdadeira Fé que constrói o Reino, porque apegados cegamente aos seus próprios postulados, sem acuidade profunda para perceber o agir de Deus no tempo e os muitos desafios da Igreja de Cristo. Se de um lado o formalismo apostólico-reformado não consegue sentir nada além do recato espiritual controlado, considerando exótica toda manifestação avivalista, do outro, temos os soberbos da “batalha espiritual”, que movidos por muita emoção e espírito de vaidade, reduzem a experiência espiritual com o Espírito Santo a momentos fortes de êxtase, sem demonstrarem os frutos práticos dessa unção depois de manifesta, além da exibição e da arrogância.

12. Quisemos, com essa espécie de preâmbulo, contextualizar um pouco o atual debate sobre as transformações pelas quais passa nosso universo religioso e trazer para esse debate a questão do Espírito Santo, por muito tempo tratada somente enquanto doutrina trinitária apostólica, como a terceira pessoa da Santíssima Trindade. Nesse sentido têm mérito os movimentos pentecostal e carismático, enquanto resgatam a ênfase exaustiva na ação institucional e sacramental do Espírito Santo, coisa até então pouco considerada na grande parte da história da Igreja de Cristo. E desde desse momento a Igreja não é a mesma coisa porque intuímos que o Espírito Santo, quando vem, não pode deixar tudo como está em nossa vida. Ele não deixou jamais tranqüilos e sossegados aqueles sobre os quais veio. Aquele a quem o Espírito Santo toca o Espírito Santo muda! Se os apóstolos pudessem ter escolhido e decidido eles mesmos o modo como deveriam manifestar, daí a pouco, o Espírito, não teriam jamais escolhido pôr-se a falar em línguas desconhecidas, expondo-se a se tornar objeto de risos da população e serem tidos como “embriagados de vinho” (cf.At. 2,13). Entretanto, foi assim que aconteceu. Peçamos antes de tudo ao Espírito que nos tire o medo que temos dele. Digamos: “Vem, vem, Espírito Santo. Vem agora, vem como quiseres. Toma, aquece, cura, irriga, queima, renova”.